A circularidade dos conteúdos...
A escola é uma instância que se esgota
em si mesma. Existe para satisfação das próprias necessidades e prepara o aluno
para a próxima etapa dentro dela mesma.
Com raríssimas exceções, a quase totalidade do conteúdo curricular oferecido
pela escola, mormente em Língua Portuguesa, não encontra aplicação na vida
prática em mundo pós-escola. Do ensino fundamental ao médio, nossos alunos são
bombardeados com uma “nomenclaturização” absurda, decorada com o único
propósito de satisfazer a testes propostos pela própria escola e prontamente
esquecida assim que o vestibular é superado. Passar de ano virou sinônimo de
memorização de elementos inúteis os quais só servirão se o aluno tornar-se mais
um torturador – vale dizer, um professor. Na vida prática, quer o aluno vire um
carpinteiro, quer torne-se um doutor em medicina, ele jamais, em momento algum
vai precisar reconhecer e anunciar que: “Essa frase é uma subordinada
substantiva objetiva direta”. Nem vai levar esse tipo de conhecimento em conta
nas vezes, bem poucas, em que tiver de escrever um texto. Como resume Geraldi [1], o
aluno é instado a escrever somente para ultrapassar os obstáculos construídos
pela própria escola: “Aprende-se a escrever na escola para a própria escola”. Mesmo
que esse aluno torne-se um brilhante escritor, sua fluência e brilho criativo
não vão depender da classificação da frase que ele utilizou, mas da forma como
aprendeu a ler e escrever e da paixão de seus tutores pela leitura. Para se ter
uma idéia do que essa mencionada memorização significa, basta dizer que em
determinado ponto gramatical há a necessidade de decorar vinte e sete
terminologias[2] sobre
coordenação e subordinação para fazer uma prova com razoável grau de sucesso.
O ensino oficial distribui um conhecimento de tal monta circular que
enreda o aluno em uma cadeia de memorizações estéreis que o impede não só de
efetivamente compreender e refletir
sobre discursos, mas também o distancia da vontade de produzi-los, de tornar-se
um agente. Nesse contexto, o plano de aula ideal deve procurar apresentar aos
alunos do Ensino Médio as situações textuais que pedem coordenação ou
subordinação. Evita-se a memorização estéril. A tentativa está longe, é claro,
de inserir-se na didática do letramento situado apresentado por Bunzen &
Mendonça[3]
por ser muito difícil propor uma pratica social onde a exigência desse tipo de
adequação sintática emirja naturalmente. Entretanto, o simples fato de apresentar o ponto gramatical em sua
instância de uso pode facilitar ou até mesmo aguçar o interesse dos alunos.
A pessoa que possuir interesse em escrever, quer seja por razões
individuais, quer profissionais, vai
enveredar por um caminho que exigirá muito esforço e criatividade. Aprender a
escrever não é uma etapa, uma fase que se encerra com a entrega do diploma, mas
tarefa de uma vida toda. Escrever demanda leitura, que demanda escrita... enfim,
há um circulo virtuoso que eventualmente resultará em um escritor competente se a esse círculo for
acrescida uma dose de prazer. Como um aluno do ensino fundamental pode entrar
nesse círculo? Certamente, ele terá pavor da escrita se deixar-se levar pela
ênfase dada na escola ao seu aspecto normativo.
... e seus efeitos na educação brasileira
Esse modelo normativo hoje utilizado é herança dos governos militares que
assolaram nosso País por décadas e que atendia ao propósito de tornar mais
seletivo o ingresso ao Ensino Superior, como notou recentemente o educador José
Renato Polli em artigo registrado no Jornal de Jundiaí em sua edição de 03 de
Junho do corrente ano. O intuito dos governantes à época era atender a
interesses de classes bem definidos. O modelo adotado formou uma mentalidade
que perdura por décadas, qual seja, a de que os estudantes devem ter os olhos
voltados para a escolha de uma profissão, o que
tem desviado o foco da Educação Básica de preparar o jovem
oferecendo-lhes perspectivas amplas. Mas
as ditaduras e suas máquinas de governo não necessitam apenas que os alunos
estejam preparados para o mercado de trabalho; precisam, ainda mais, que
geração após geração continue calada e sem opinião, totalmente sem espírito
crítico e analítico, sem capacidade de tomar as próprias decisões e fazer as
próprias escolhas. As ditaduras precisam de não-cidadãos para poderem se
perpetuar.
A democratização que se seguiu pressupôs também a garantia de acesso ao
conhecimento lingüístico tão necessário à formação da cidadania. Sem esse
conhecimento, ou competência, como dirá Perrenoud, haverá sempre um
não-sujeito, incapaz de se fazer ver enquanto portador de uma cultura, linguagem
e experiências diversas porque não é agente da própria vivência. O responsável
por formar uma consciência cidadã, de pertencimento, é o professor do Ensino Fundamental. A ele é dada a tarefa de
romper os preconceitos lingüísticos e de construir o respeito às diferenças
para que o aluno possa reconhecer certos mitos, como o de que só existe um modo
certo de falar, e outros que parecem produzir cidadãos de primeira e de segunda
classe.
Diferente da democracia legítima, os governos populistas são tão
perniciosos quanto as ditaduras, pois se disfarçam em democracias. Com o
objetivo claro de conquistar eleitores, nossos governos vêm investindo maiores
recursos no ensino superior, justificando que é melhor para o cidadão fazer uma
faculdade ruim do que não fazer nenhuma. Seria um grande avanço e motivo de
orgulho para nosso país, se nossos bacharéis não fossem analfabetos funcionais.
Cada centavo investido no ensino superior será sempre mal gasto enquanto
o ensino fundamental não for levado a sério. Pelo governo, pelos professores,
pela família. Eis alguns indicadores sobre o ensino médio que demonstram quem
são os alunos egressos do Ensino Fundamental e futuros universitários:
- O Brasil está em 54º. lugar em matemática, entre 57 países.[4]
- É o 49º. em leitura, entre 56 países.[5]
- 42,6% dos alunos da 3ª. série do ensino médio estão acima da idade
adequada.[6]
- Apenas 24,5% dos alunos da 3ª. série do EM sabem o conteúdo de LP[7]
- 74% da população brasileira não consegue entender um texto simples[8]
O que fazer?
Infelizmente as ações necessárias para a melhoria do ensino no Brasil são
de longo prazo, o que não interessa nada aos políticos, nossos governantes.
Estudiosos divergem em alguns pontos sobre como melhorar o ensino, mas o
que absolutamente todos concordam é que precisamos de professores bem treinados. Mas como visto acima, os alunos que
ingressam nas universidades para os cursos na área do Magistério chegam sem
qualquer base e, após quatro anos, estarão graduados e ensinando um conteúdo
que não dominam. É o que prega, também, Martin Carnoy, pesquisador americano
dedicado a entender a educação no Brasil. Segundo ele:
Falta no
Brasil entender o básico. Os professores devem ser bem treinados para ensinar –
e não para difundir teorias pedagógicas genéricas. As faculdades precisam estar
atentas a isso. Um bom professor de matemática ou de línguas é aquele que
domina o conteúdo de sua matéria e consegue passá-lo adiante de maneira
atraente aos alunos. Simples assim. O que vejo no cenário brasileiro, no
entanto, é a difusão de um valor diferente: o de que todo professor deve ser um
bom teórico.[9]
O jornal Folha de São Paulo[10]
consultou dezessete pesquisas elaboradas por diversos institutos nacionais e
internacionais e publicou uma matéria derrubando alguns mitos relacionados ao
ensino e, mais uma vez, a questão do treinamento do professor reaparece:
1 – Salários: aumento de salário não tem impacto imediato na maneira como
o professor ensina, já que esse docente não está bem preparado. No longo prazo,
altos salários atrairiam os melhores alunos das Universidades para o
magistério;
2 – Infraestrutura: sem ter professores preparados para utilizar as
melhorias estruturais (tecnologia, teatro), dispor de recursos avançados não
traz avanços no aprendizado dos alunos.
Mas professores bem preparados também não conseguem fugir da
circularidade curricular, da ideologia e dos métodos de ensino impostos, muitas
vezes já ultrapassados, como é o caso do pseudo construtivismo brasileiro. De
acordo com Carnoy:
O construtivismo que é hoje aplicado em escolas brasileiras está tão
distante do conceito original, aquele de Jean Piaget, que não dá nem mesmo para
dizer que se está diante dessa teoria. Falta um olhar mais científico e apurado
sobre o que diz respeito à sala de aula. É bem verdade que esse não é um
problema exclusivamente brasileiro. Especialistas no mundo todo têm o hábito de
martelar seus ideários sem se preocupar em saber que benefícios eles trarão ao
ensino. Há um excesso de ideologia na educação.
Conclusão
É fato que uma parcela importante de nossos universitários são
analfabetos funcionais. É assim porque tiveram uma péssima educação básica. O
ensino básico é ruim porque os professores, egressos das universidades, não
dominam o conteúdo que ensinam. Os professores não dominam o conteúdo porque
tiveram uma péssima educação básica. E podemos continuar infinitamente com
essas explicações, mas, mais importante, é apontar soluções.
Não podemos negar a influência do meio no processo de aprendizagem.
O ambiente familiar do aluno, sua
comunidade, as (não) perspectivas de futuro, a desnutrição são todos fatores
que afetam diretamente não só o interesse em aprender, mas a própria capacidade
de assimilar informação. Mas a qualidade do professor de ensino fundamental é
ainda mais determinante, principalmente se somada a um conteúdo curricular
não-circular, direcionado a formar cidadãos.
[2] Garcia
Othon M. Comunicação em Prosa Moderna,m , FGV, 2004
[3] Bunzen e
Mendonça (org.) Português no ensino médio e formação do professor, Parábola,
2007
[4] PISA
2006 – Programa Internacional para Avaliação de Alunos, para estudantes de 15
anos. Fonte www.inep.gov.br
[5] Idem.
[6]
Saeb - Sistema de Avaliação do Ensino
Básico – Fonte www.inep.gov.br
[7] Idem
[8] INAF –
Indicador de Analfabetismo Funcional
[9] Revista
Veja, Ed. Abril, edição 2132, 30/09/2009
[10] Folha
de São Paulo, Caderno Saber, página C6, 09/11/2009